"No Covil do Lobo Não Há Ateus"
Friday, March 30, 2007
 

Há Vidas Assim



- Tens que estudar muito para seres alguém na vida, para poderes ter um bom emprego, teres a tua casa e a tua família. Ouvi isto tinha talvez nove anos, embora não fosse sequer necessário ouvi-lo pois as evidências eram mais que muitas, as vidas que me rodeavam rumavam sempre num sentido, à laia de cursos de água e eu, como qualquer outro animal, absorvia o destino que me fora traçado à nascença, sem inquietação, sem ansiedade, - sim, casar e ter filhos, ter emprego e ganhar dinheiro, ser alguém na vida, até porque aos nove anos resolve-se qualquer ansiedade com uma bola de futebol, duas balizas e mais uns amigos, ou até mesmo sozinho no riacho que alimentava as hortas dos meus avós. Passava horas a ver aqueles peixes microscópicos e a desarrumar os seixos, atirando-os de um lado para o outro. Nos primeiros dias de Verão, quando o sol batia na janela em jeito de despertador, apressava-me a sair de casa, só para apanhar as rãs ainda meio adormecidas, mergulhava a mão no lodo e de uma assentada apanhava quatro rãs, pegava num saco de plástico e com um pequena rede improvisada pescava uns quantos girinos. Após concluída a pescaria, depositava a mercadoria anfíbia nos tanques onde as mulheres lavavam a roupa, tapava os tanques um a um e desaparecia para a escola. – Madjer aparece hoje nos tanques depois da aula, avisa o Amadeu. O pior eram mesmo as aulas, quatro paredes pinceladas com desenhos primaveris, cadeiras desengonçadas e mesas pálidas a condizer com o tédio branco da bata da professora, com o tédio daquele discurso inexorável. Tantas rãs para eu apanhar, tantos golos para marcar, tanta vida para viver, sim, brincadeira mesmo, divertimento puro e duro, mas não, eu tinha que ser alguém na vida. A professora já começava a detestar as minhas encenações na sala de aula, ora puxava de um lápis de cor e simulava ser um empresário de sucesso a fumar uma cigarrada depois de mais um negócio fantástico: - vou ser alguém, ainda hoje vendi mais vinte rãs aos miúdos da rua Branca, em poucos minutos arrecadei dez berlindes azuis e um abafador dos maiores, ora sonhava os golos marcados (dois com o pé direito e um com o pé esquerdo, após drible perfeito a dois adversários), ou então agrupava os livros na minha secretária e simulava ser um piloto de uma nave espacial. Tudo ali ao meu dispor, o trem de aterragem descia ou subia ao tocar com a palma da mão no livro de matemática, Ainda falta muito para tocar professora? , atingia a velocidade da luz quando o livro de português fosse colocado na vertical, - Pára com isso imediatamente, todos os dias a mesma palermice, sou professora ou sou o quê afinal? Calmamente pressionava o livro de matemática, o trem descia, tirava a chave da ignição da nave e sentia uma falta enorme da minha mãe, da sua voz, dos seus bolos de iogurte, das suas repreensões moralistas, - mas estás-me a ouvir meu cabeça no ar? , e eu de pés e mão atadas à secretária, à cadeira, à teimosia dos outros em quererem, sabia lá eu porquê, que eu fosse alguém na vida. Tocava para a saída, todos os putos a correr para os braços das mães, ~Uma fatia de bolo, feito pelas tuas mãos, e nem precisavas de me vir buscar à escola, o Madjer já me esperava junto à velhota que vendia tudo o que era guloseimas, uma senhora gorda de avental azul escuro, sempre sentada num banco de madeira, ainda mais velho do que ela, nunca a vi chegar, nem a partir, nunca a vi envelhecer sequer, no entanto eu tinha que ser alguém aos nove e ela tinha que vender rebuçados aos setenta anos de idade. Sempre acreditei que ela fosse alguém, pelo menos o bolso do avental abarrotava com tantas moedas, mas as mães, que levavam as crianças pela mão, Hoje também não me vieste buscar, garantiam que não, que aquelas mãos enrugadas, perdidas entre trocos e rebuçados, eram mãos que deveriam ser tomadas como exemplo por todos os que conduziam naves na sala de aula. Às dezasseis horas em ponto lá estávamos no morro que dava para as traseiras dos tanques, as primeiras mulheres chegavam também, com alguidares apoiados nas cabeças, apinhados de roupa, o Amadeu interrogava-me com alguma estupefacção: - conseguiste apanhar dez rãs ?! O Madjer rezava para que as rãs não dessem sinal de vida antecipadamente, ao mesmo tempo que retalhava com os dentes uma azeda. A primeira mulher, uma vizinha minha, destapou o tanque, e afogou a roupa na sua água, quando as rãs saltaram para cima do branco dos lençóis, começou o festival, o Madjer já rebolava no chão a rir, o Amadeu, que fora avistado pela tia, fugira sem deixar rasto, as rãs, desorientadas com os gritos, saltavam rumo ao verde das ervas, um alguidar tombava para cima de um pé, a minha vizinha, mais verde que as rãs e ervas, subira para cima da sogra e eu, já com saudades de perder tudo aquilo no dia em que fosse alguém, mantinha-me tranquilo, sem pestanejar, a respirar o ar livre fora da sala de aula, a ouvir o coaxar das rãs, a contemplar o despertador do sol, a relembrar as mãos mergulhadas no lodo do rio e os golos marcados como os do Rui Águas no portão da oficina, a ver ainda ao longe a velhota das guloseimas a contar os trocos no bolso do avental, e a continuar a desejar o teu bolo de iogurte, que me aguardava, redondo, em cima da mesa da cozinha.
 

My Photo
Name:
Location: Odivelas, Portugal

Mais perto do fim, mas ainda assim no início...

ARCHIVES
10/31/06 / 11/13/06 / 11/19/06 / 11/22/06 / 12/07/06 / 01/03/07 / 01/09/07 / 01/12/07 / 01/18/07 / 01/23/07 / 02/10/07 / 02/25/07 / 03/30/07 / 04/25/07 / 10/18/07 /


Powered by Blogger