"No Covil do Lobo Não Há Ateus"
Thursday, January 18, 2007
 
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Abre o Lixo do Amor


A estrada molhada conduzia-os até um dos comércios clandestinos de Chelas. Ele de gorro preto, usado por mais de mil cabeças, olhos cansados e no rosto a poeira humedecida, entranhada nas rugas profundas, fruto do suor desperdiçado nas voltas da vida. Ela de sorriso irónico, de quem nunca espera nada de bom, partilhando da mesma poeira. Chegavam sempre por volta das dez horas à compilação desarrumada dos prédios arco-íris. O cheiro a mijo, copiosamente vivo, expulsava sombras dos becos labirínticos, desenhados nas traseiras daquele betão colorido. A dose do costume ó Bexigas? As moedas soltavam-se-lhe da mão, com alguma dor, pela vontade de ser gente e pela antecipação dolorosa da ressaca futura. - Até amanha sócio! Bexigas saía do beco, na companhia de outras sombras, e voltava-se agora para a babilónia da rua, de bolsos cheios de sonhos alucinantes. Ciganos vendiam na calçada as cuecas mais baratas, alguma vez vistas, enquanto o Mercedes albergava ainda as crianças ranhosas em pijama. Lena esperava-o no outro lado da estrada, sentada na paragem, e observava, impavidamente, o seu reflexo na janela do autocarro, Tens dentes? Tens. Tens cabelo? Tens. Pareces normal? Embora pensasse que sim, a expressão misericordiosa dos passageiros que a olhavam faziam-na acreditar que o gancho do cabelo estava mal colocado, que as olheiras estavam demasiadamente pinceladas de insónias, Os putos estão cheios de ranho, vão cagar o Mercedes todo, e que a roupa, mesmo só pelo aspecto, cheirava aos becos revisitados vezes sem conta pelo seu companheiro, Vamos lá freguês, o cigano está maluco e faz tudo a um euro, é comprar, é comprar! todos os dias, sem excepção.
Sorriram um para o outro, com os poucos dentes que restavam, beijavam-se com o pouco amor que restava nos olhares curiosos que os cercavam, e partiam, caminhando por entre sonhos de algibeira e misericórdias transeuntes, de mãos dadas, sempre de mãos dadas, com toda a fé peregrina, até à próxima babilónia. – Vais ver Lena, hoje vai haver concerto no Atlântico, vai ser uma arrumar de carros que não imaginas, vamos abrir uma empresa de arrumação automóvel, com farda e tudo, vamos comprar uma casa, uma casa não, um castelo, tu mereces um castelo minha rainha e um Mercedes como o dos ciganos. Uma sandes no bucho, de torresmos, água da torneira Torce tudo para a esquerda agora, e uma chuva massacrante, alimentavam mais um dia, Farda vai ser verde e amarela, de trabalho, de misericórdias descrentes, Está bom assim. Carros apressados e ambulâncias galopantes salpicavam a cidade de ansiendade. Casais atarefados, de olhos vazios, à laia de bonecos de cerâmica dos antiquários, sem expressão, marchavam rumo ao dormitório, depois de mais um dia expostos numa vitrina qualquer,sem sangue, sem as rugas poeirentas e sem os ganchos desconjuntados, com todos os dentes nas bocas fechadas. - Vamos seguir-lhes os passos Lena, já não há mais lugares vazios para inventar, mas ainda não vai ser desta que me torno um empresário de sucesso, daqueles com gravata e tudo. Regressavam agora ao castelo de madeira da barraca, arrumada entre uns caniços e umas quantas outras barracas, algumas delas já abandonadas por força da mão do Senhor, nos arredores do campo da bola do Oriental, uma espécie de condomínio desintegrado, com a pressa vagarosa de uma lesma, de mãos dadas, copiando os passos de cerâmica e ditando, sílaba a sílaba, o calor de um beijo, Ainda temos sangue, a quem se atrevesse a olhar. Ao chegar, deitaram-se num colchão raquítico de riscas azuis, separaram metades de limão, colheres queimadas e seringas usadas. Adormeciam de mãos dadas e de barriga cheia de sonhos, de tal forma que, por entre as ripas de madeira do castelo, o Tejo parecia um imenso lençol azul, onde se abrigavam. Comprem as cuecas mais baratas fregueses, caminhem de olhos vazios com as vossas pernas de cerâmica, comprem um Mercedes com crianças ranhosas lá dentro, lancem olhares misericordiosos a tudo o que arrume carros com gorros piolhosos e acima de tudo evitem pensar que no lixo pode nascer o amor.
 

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Location: Odivelas, Portugal

Mais perto do fim, mas ainda assim no início...

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