"No Covil do Lobo Não Há Ateus"
Friday, January 12, 2007
 

Deste Que Vos Ama



- Eu agora já não vejo tão bem, antes sim, via tudo, o que os olhos alcançavam e o que nunca deveria ter visto, agora não…
Mordia o sol as 18 horas, vestido de laranja fosco, enquanto as tropas descansavam nas sombras desengonçadas das árvores cujo o nome nunca ninguém saberá. O ar abafado e húmido só não destruía os mosquitos, uma chapada no braço, na cara, um coçar de desespero e mais um vampiro morto entre milhões que se regozijam às voltas incertas no ar. Eu mastigava, deitado, a palha seca dependurada no canto da boca, e todos os outros quicos queixavam-se em harmonia aos deuses, ao sol, aos mosquitos, nem eles sabiam a quem mais se queixar. Após um mês na selva, em plena guerrilha, era-nos agora servido o néctar dos deuses, a estranha paz.
- Meu tenente desta vez foi o Afonso, atrás da igreja com a corda do sino, o corpo ainda está quente meu tenente. Nada a fazer, nem lágrimas suportava na minha cara saturada das picadas, simplesmente mais um, mais um, mais um. Estes gajos estão treinados para matar e lutar, para comer merda se for preciso, agora para o sossego não, para a depressão da paz não, nem para a nostalgia que lhes invade o pensamento com imagens da família, das mulheres, dos amigos, do jogo clandestino, das bebedeiras depois do trabalho, das carícias duma fulana qualquer, da estupidez que os norteia, Matar meu tenente, só sei matar e pendurar as cabeças dos pretos no chaimite, dos bichos em que se tornaram. Hoje o Afonso, ontem o Caneças, amanha outro tísico qualquer, é-me indiferente. Se há coisa que aprendi na guerra, foi a jogar xadrez com a morte, é tão nítida a sua presença que quase lhe sinto o odor e quase lhe vislumbro os traços negros da silhueta. Neste momento estamos empatados, posso avançar o meu peão, para destapar a diagonal do bispo, e assim ficar com três possíveis ataques ao cavalo dela, mas o problema é porra da rainha, ela com esta peça consegue fuzilar todo o batalhão, Meu tenente o corpo ainda está quente, de qualquer forma, isto não passa de um jogo, tudo não passa de um jogo, aquela cabeça ali pendurada, entre os faróis do chaimite, pertence a um peão que avançou cedo demais, foi degolado apenas, só não entendo porque é quando escrevo isto nas minhas cartas, enviadas à família, ficam estupefactos com a ligeireza com que descrevo o golpe eficaz da catana no pescoço mole, o sangue jorrado segundos depois e a posterior exibição do troféu, como é que ficam impressionados com tudo isto? É que para nós é tudo tão natural. Aquele ao menos não vai ter que voltar a fugir da rainha, não vai ter de pensar que já teve uma vida, mesmo que de asno, como a minha em Lisboa, a suportar os desabafos da sogra e as intrujices do sogro, e que de um momento para o outro lhe disseram: - Ou matas ou morres.
- Mas avô diz-me, que idade tinhas nesta foto? Aquilo no teu colar são orelhas?
- Não consigo ver.
- Avô vê melhor a foto.
- Eu agora já não vejo tão bem, antes sim, via tudo, o que os olhos alcançavam e o que nunca deveria ter visto, agora não…


b.m.l.r.
 

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Location: Odivelas, Portugal

Mais perto do fim, mas ainda assim no início...

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