"No Covil do Lobo Não Há Ateus"
Thursday, December 07, 2006
 

Liberdade Condicional


Ainda se ouviam os últimos gritos de vitória, embora os cravos já estivessem apodrecido nas metralhadoras. O Largo do Carmo, envolto na neblina ribeirinha, relembrava, aos camones que passavam, os factos ocorridos há dois anos atrás, através de cartazes VIVA A LIBERDADE, encalhados nas paredes pesarosas dos edifícios adormecidos, ainda mais podres que os próprios cravos. Carlos repisava, vezes sem conta, aquela calçada para recordar cada passo dado na conquista da sua democracia de mão dada com a sua Isabel, uma rapariga magra, cabelos longos, de expressão paciente, e muito apaixonada pela revolução desenhada no mapa de sonhos do deu cavaleiro libertino, Mais liberdade, mais vida, mais amor Isabel, somava Carlos ao ouvido da paciente rapariga. Caminhavam militarmente, de mãos dadas, Lembras-te naquele regresso a casa quando as nossas mãos quase se fundiam?, contornando as poças de água, os tanques de guerra e somando a cada passo um novo sentimento à democracia prestes a ser sonhada. Como sempre as operações de matemática terminavam na velha casa do Lumiar, numa cama receosa da agitação de dois corpos jovens e sedentos de mais somas. Isabel com o trunfo feminino da sedução, lambia languidamente a orelha direita do cavaleiro, Já não sinto a tua língua Isabel, dois corpos envoltos, fechados numa agitação de pernas e gritos, numa sinfonia digna de uma revolução erótica, até ao culminar da batalha entre dois corpos despejados de tirania, - A tua língua Isabel, a tua língua?, perguntava Carlos, em cada recordação no largo do Carmo, vestido com a sua invisível farda de tenente-coronel e de peito intumescido pelas conquistas cada vez mais apagadas, PORTUGAL!! PORTUGAL!!, outrora de mão dada, Já passaram dois anos Isabel?, sempre a somar a liberdade ao amor e a subtrair o Cardeal Cerejeira ao poder cada vez menos repressivo da PIDE, Responde Isabel!
O desejo de percorrer o desconhecido tomou posse de Carlos, tal como de outros tantos jovens desconhecedores que no nosso país também se podiam descobrir ou inventar novos sonhos, Um revolucionário não se pode casar aos 20 anos Isabel, estava na moda fugir da tradição. O cinema, o jogo, o álcool, Quero lá saber o que é que a tua família pensa de mim, as casas de meninas cintilantes, tudo era novidade, tudo o fazia esquecer os cabelos longos e pacientes, a lânguida língua, Se eu soubesse Isabel. O emprego no exército e a herança deixada por uma tia-avó ajudavam a suportar as novas investigações, de tal forma que todos os dias eram noite de expedição. Entre o fumo e o calor perfumado de uma das casas de putas na Almirante Reis, o libertino narrava ao ouvido daqueles fantoches de lantejoulas perfumadas, façanhas nunca feitas, amores nunca vividos, E a tua língua meu amor?!, à laia de Dom Quixote, sem entender o porquê de tudo aquilo, das bebedeiras, das putas, da ausência de moínhos de vento, do 25 de Abril, Lembraste quando as nossas mãos quase se fundiam Isabel?, em cada noite um hálito diferente, uma mosca diferente pousava sobre a sua cabeça e no regresso ao Lumiar a cama já não temia qualquer movimento violento ou complacente. O corpo, solitário, quedava-se assombrosamente como o de um fantasma cansado, no quarto gelado, na tua ausência gelada Isabel, na ausência dos teus passos femininos Isabel, Lembraste das somas Isabel?
Mais um dia no quartel e mais uma noite na Almirante Reis, risos melancólicos, fartos da revolução, espalhavam-se nos sofás vestidos de carne nua, - Vamos tiranizar esta merda para depois revolucionar Isabel?, sonhava Carlos enquanto se dissolvia entre as pernas de um novo fantoche, Vamos somar tudo de novo Isabel?, os cabelos prendiam-se entre os dedos, um gemido de dor soltava-se, o fantoche erguia a sua cabeça de trapo e gritava:
- Merda mais a este velho bêbedo, não me aperte a mão, nem me chame Isabel, se quiser pague primeiro. Bramia a madame ao ver-se apertada contra o corpo mole do tenente-coronel fictício, Nem esta me quer Isabel, cada vez mais embriagado, Eu não podia imaginar que a revolução era isto meu amor.
- Pague primeiro, e não me aperte as mamas, irrrra!! continuava o fantoche a gritar enquanto golpeava involuntariamente a orelha esquerda do cavaleiro, com a sua unha vermelho cravo.
Carlos, retornava ao Lumiar de orelha inchada, de quarenta anos inchados, de garganta inchada de tanta revolução, Lembraste das nossas mãos fundidas, quando regressávamos a casa?, de descobertas de fantoches, Merda que me dói o abano!, de álcool apaziguador. Olhou-se no espelho côncavo do velho guarda-vestidos, sentado na cama outrora medrosa, no alto dos seus quarenta longos anos e secou a lágrima escondida:
– Dói-me a orelha esquerda e a ausência da tua língua na da direita, Isabel.
 

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Mais perto do fim, mas ainda assim no início...

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