"No Covil do Lobo Não Há Ateus"
Saturday, February 10, 2007
 

A Minha Mente No Teu Corpo



Ele quase dormia acordado, olhos sempre vidrados, ausente do mundo, tentava separar a mente do corpo, descarnar todos os sentimentos atabalhoados e perguntava, vezes sem conta, o porquê de sentir o que sentia, fechando-se nas imagens que recordava, nas últimas palavras proferidas e ouvidas naqueles diálogos imaginários, nem sempre claros, em frente do espelho da alma. Remoía, abundantemente, à laia de jogador de xadrez, as jogadas da vida que se lhe assaltavam no pensamento: - porque é que sinto isto, Luísa? Em cada pausa no trabalho, em cada esquina vazia de gente: - Porque é que sinto isto, Luísa? Chegava a abrir um livro nos transportes públicos, para a esquecer nas páginas amarelecidas, detinha-se nas interrogações filosóficas de Nietzsche e no seu sarcasmo em torno do papel feminino na sociedade, compreendia-o e insultava-o, - Este merdas tem razão, enchia-se de coragem e fechava o amarelo do livro, entre duas pulsações de papel um retorno ao cheiro doce, ao fecundo leito agora somente imaginado, e o sarcasmo anteriormente lido juntava-se ao fumo do escape do autocarro, Se ao menos Nietzsche conhecesse a Luísa, e desaparecia na atmosfera cinzenta. Antes de chegar a casa parava no café do costume, enchia o copo da imperial por cinco vezes, algumas palavras soltavam-se-lhe da boca, como se de um ventríloquo se tratasse, a voz era dele, mas o boneco era de outro gajo qualquer, Entorna de novo o frio da tua mão no meu peito, Luísa, adornava cada trago de cerveja com uma nova conversa entre o rato Mickey e o tipo da oficina, olhava para os ponteiros apressados do relógio, pulava por cima do Mickey, do pato do Donald, do Pateta e do mecânico e partia para o seu depósito oficial, Se ao menos o Nietzsche tivesse conhecido o sabor dos teus lábios, chegando à hora do costume.
- Boa noite.
- Boa noite querido, o jantar está na mesa.
- Não tenho fome, vou dar um beijo aos miúdos e vou-me deitar.
Embora soubesse que o seu gelo contagiava todo o árctico da casa, não pensava sequer em alterar fosse o que fosse. – Come ao menos uma sopa, entrava no quarto – Come ao menos uma peça de fruta, e entregava-se ao torpor do jardim dos lençóis, - E um pouco de queijo?, ligava o rádio e detinha-se a escutar o som por ele vomitado:

Morre-se devagar neste país
onde é depressa a mágoa e a saudade
oh meu amor de longe quem me diz
Como é a tua sombra na cidade

Morre-se devagar em frente ao Tejo
repetindo o teu nome lentamente
cintura com cintura, beijo a beijo
e gritá-lo, abraçado, a toda a gente

Morre-se devagar e de morrer
fica a cinza de um corpo no olhar
oh meu amor a noite se vier
é seara de nós ao pé do mar (Canção: Rua do Quelhas - Vitorino)

Sucumbia aos diálogos frenéticos (onde estás? Tens outro? Ainda me amas? Ela gosta de mim, ela só está a fazer mais um daqueles jogos, estou certo, eu sei que sim) – Um leite quente?, e adormecia sem escutar o gelo que deixara para trás, - E olhares para mim ao menos?!, sem olhar para trás, numa fuga obsessiva.
- Porque Choras Ana?
- Porque quero.
- Tens algum problema?
- Consegues ver quantos pés no fundo da cama?
- Quatro
- Então diz-me porque é que eu vejo seis?
 

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Mais perto do fim, mas ainda assim no início...

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