"No Covil do Lobo Não Há Ateus"
Thursday, October 18, 2007
 
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Carta Nómada



Querido avô,


Sei que ainda lê o que eu escrevo, caso contrário jamais escreveria o que quer que fosse, sempre me ouviu, sempre teve o cuidado de mostrar algum interesse, ou pelo menos simular alguma atenção aos meus movimentos, aos meus sons, com os seus gestos de pastor paciente, observador, resignado perante o prado ondulante que cercava o palácio abandonado onde morávamos e onde eu brincava, com meus irmãos e primos, à laia de bezerros confusos na liberdade. Relembro principalmente os fins de tarde, quando o Verão interrompia o silêncio dos canaviais com os seus afagos de brisas clandestinas, para poder beber a água do rio que serpenteava a terra impregnada de relva rastejante e nós, pais e filhos, avós e netos, gentes e cães rafeiros, num retrato móvel de cenário rural, perante o olhar desconfiado da cidade que circundava toda esta fotografia marginal.
O seu olhar impenetrável assustava os meus irmãos, a distância que por vezes impunha e as rugas que lhe serpenteavam a cara como o rio a terra, deixava-os com medo de se aproximarem, de rirem, de serem ciganos ao pé de si, de poderem saltar para o seu colo, como eu tanto fazia naquelas tardes de Verão. Não sei porquê, mas revia-me no mapa de rugas do seu rosto, nas suas pesadas e marcadas mãos, eram mãos minhas, eram rugas minhas, fora uma vida trilhada para que eu pudesse hoje escrever-lhe, para que eu pudesse hoje saborear os conselhos de outrora, o seu olhar à distância, sentado nos degraus da porta do palácio a fumar aquele tabaco de enrolar que tantas vezes lhe fui comprar na mercearia do largo. O seu ar ausente contrapunha-se ao seu espírito activo e sábio, ensinava a contar, a ler, a dançar, a falar. Por si tínhamos mais alegria ainda, vivendo interpretando os quase invisíveis códigos sociais, para que nos entendessem também melhor, mas nem sempre foi conseguido, assim como também raramente nos deram hipóteses de nos aproximarmos.
Tinha talvez uns 9 anos quando o avô nos chamou para ouvirmos um disco vinil de flamenco, um cigano ainda novo estava a dar que falar, Camaron de la Isla. Todos escutámos impávidos, as suas mãos fecharam-se em complexos nós de marinheiro, para de seguida se desatarem em estalos de dedos, os seus olhos desapareciam, os seus pés acompanhavam o compasso ao mesmo tempo que a poeira pintava os sapatos de um amarelo seco, idêntico ao das fotografias da sua juventude, que tantas vezes observei. O sangue que nos corria nas veias fluía também ao ritmo da música, eu dançava sem vergonha, de peito intumescido, as mulheres aproximavam-se, marcavam tempos musicais ao som de palmas cuidadosamente compassadas, os olhares, o seu olhar principalmente, elevava-me até me perder no tempo e no espaço, suava, pisava o chão, abria a camisa, quase a rasgava, gritava, rodopiava, e sentia a nossa alma mais forte que nunca. - Sou cigano, de sangue, pele, de tudo o que me rodeia, sentia eu, elevando-me cada vez mais perante os olhares envaidecidos da minha gente.
As veias cerradas de homem adulto brilham agora com o reflexo da luz no suor, o palco de madeira substituiu os caminhos de cabra, o fumo deu lugar ao pó amarelo idêntico ao amarelo da fotografia em que o avô montava um cavalo negro, os olhares dos meus antepassados, dos meus irmão, da minha gente, deram lugar a olhares consumistas, que me compram como um produto qualquer, gostam de ouvir as guitarras, os pés a baterem no estrado de madeira, mas nunca irão entender a minha admiração pelas rugas secas da sua cara avô… se ao menos eles entendessem a minha alegria por escrever-lhe esta carta, a minha garra em dançar junto dos meus, este sorriso estampado no rosto do meu corpo marginal, jamais me comprariam, subiriam ao palco, suavam comigo, batiam os pés, saltavam com ganas até não poderem mais… jamais me comprariam. As luzes apagam-se, a música adormece, toda a gente deixa de me consumir, após um elogio, quantas vezes néscio, de palmas longas, prolongadas no tempo, tão prolongadas quanto o silêncio do seu olhar, avô… e eu, a caminho do camarim, repiso os prados verdes, tropeço na bola de futebol dos meus primos, e alcanço uma das suas rugas na minha testa, revejo o palácio abandonado, fecho os olhos, fecho a minha boca para não ter de perguntar em voz alta, onde está, avô, onde está o meu povo??
 
Wednesday, April 25, 2007
 

Ó Bailarina


Eu vi-te ó bailarina,
a dançar com o meu olhar
e a cortejar os sentimentos
das almas que te seguiam,
e na ponta dos pés erguida
eu vi-te ó alma voadora
Acima da metáfora da vida.
Desce o pano, cala-se o piano,
e o teu véu virgem esconde a sombra
Que nem suspeitávamos existir.
Eu vi-te ó alma despida,
sozinha por trás das cortinas,
acima da metáfora da vida.
 
Friday, March 30, 2007
 

Há Vidas Assim



- Tens que estudar muito para seres alguém na vida, para poderes ter um bom emprego, teres a tua casa e a tua família. Ouvi isto tinha talvez nove anos, embora não fosse sequer necessário ouvi-lo pois as evidências eram mais que muitas, as vidas que me rodeavam rumavam sempre num sentido, à laia de cursos de água e eu, como qualquer outro animal, absorvia o destino que me fora traçado à nascença, sem inquietação, sem ansiedade, - sim, casar e ter filhos, ter emprego e ganhar dinheiro, ser alguém na vida, até porque aos nove anos resolve-se qualquer ansiedade com uma bola de futebol, duas balizas e mais uns amigos, ou até mesmo sozinho no riacho que alimentava as hortas dos meus avós. Passava horas a ver aqueles peixes microscópicos e a desarrumar os seixos, atirando-os de um lado para o outro. Nos primeiros dias de Verão, quando o sol batia na janela em jeito de despertador, apressava-me a sair de casa, só para apanhar as rãs ainda meio adormecidas, mergulhava a mão no lodo e de uma assentada apanhava quatro rãs, pegava num saco de plástico e com um pequena rede improvisada pescava uns quantos girinos. Após concluída a pescaria, depositava a mercadoria anfíbia nos tanques onde as mulheres lavavam a roupa, tapava os tanques um a um e desaparecia para a escola. – Madjer aparece hoje nos tanques depois da aula, avisa o Amadeu. O pior eram mesmo as aulas, quatro paredes pinceladas com desenhos primaveris, cadeiras desengonçadas e mesas pálidas a condizer com o tédio branco da bata da professora, com o tédio daquele discurso inexorável. Tantas rãs para eu apanhar, tantos golos para marcar, tanta vida para viver, sim, brincadeira mesmo, divertimento puro e duro, mas não, eu tinha que ser alguém na vida. A professora já começava a detestar as minhas encenações na sala de aula, ora puxava de um lápis de cor e simulava ser um empresário de sucesso a fumar uma cigarrada depois de mais um negócio fantástico: - vou ser alguém, ainda hoje vendi mais vinte rãs aos miúdos da rua Branca, em poucos minutos arrecadei dez berlindes azuis e um abafador dos maiores, ora sonhava os golos marcados (dois com o pé direito e um com o pé esquerdo, após drible perfeito a dois adversários), ou então agrupava os livros na minha secretária e simulava ser um piloto de uma nave espacial. Tudo ali ao meu dispor, o trem de aterragem descia ou subia ao tocar com a palma da mão no livro de matemática, Ainda falta muito para tocar professora? , atingia a velocidade da luz quando o livro de português fosse colocado na vertical, - Pára com isso imediatamente, todos os dias a mesma palermice, sou professora ou sou o quê afinal? Calmamente pressionava o livro de matemática, o trem descia, tirava a chave da ignição da nave e sentia uma falta enorme da minha mãe, da sua voz, dos seus bolos de iogurte, das suas repreensões moralistas, - mas estás-me a ouvir meu cabeça no ar? , e eu de pés e mão atadas à secretária, à cadeira, à teimosia dos outros em quererem, sabia lá eu porquê, que eu fosse alguém na vida. Tocava para a saída, todos os putos a correr para os braços das mães, ~Uma fatia de bolo, feito pelas tuas mãos, e nem precisavas de me vir buscar à escola, o Madjer já me esperava junto à velhota que vendia tudo o que era guloseimas, uma senhora gorda de avental azul escuro, sempre sentada num banco de madeira, ainda mais velho do que ela, nunca a vi chegar, nem a partir, nunca a vi envelhecer sequer, no entanto eu tinha que ser alguém aos nove e ela tinha que vender rebuçados aos setenta anos de idade. Sempre acreditei que ela fosse alguém, pelo menos o bolso do avental abarrotava com tantas moedas, mas as mães, que levavam as crianças pela mão, Hoje também não me vieste buscar, garantiam que não, que aquelas mãos enrugadas, perdidas entre trocos e rebuçados, eram mãos que deveriam ser tomadas como exemplo por todos os que conduziam naves na sala de aula. Às dezasseis horas em ponto lá estávamos no morro que dava para as traseiras dos tanques, as primeiras mulheres chegavam também, com alguidares apoiados nas cabeças, apinhados de roupa, o Amadeu interrogava-me com alguma estupefacção: - conseguiste apanhar dez rãs ?! O Madjer rezava para que as rãs não dessem sinal de vida antecipadamente, ao mesmo tempo que retalhava com os dentes uma azeda. A primeira mulher, uma vizinha minha, destapou o tanque, e afogou a roupa na sua água, quando as rãs saltaram para cima do branco dos lençóis, começou o festival, o Madjer já rebolava no chão a rir, o Amadeu, que fora avistado pela tia, fugira sem deixar rasto, as rãs, desorientadas com os gritos, saltavam rumo ao verde das ervas, um alguidar tombava para cima de um pé, a minha vizinha, mais verde que as rãs e ervas, subira para cima da sogra e eu, já com saudades de perder tudo aquilo no dia em que fosse alguém, mantinha-me tranquilo, sem pestanejar, a respirar o ar livre fora da sala de aula, a ouvir o coaxar das rãs, a contemplar o despertador do sol, a relembrar as mãos mergulhadas no lodo do rio e os golos marcados como os do Rui Águas no portão da oficina, a ver ainda ao longe a velhota das guloseimas a contar os trocos no bolso do avental, e a continuar a desejar o teu bolo de iogurte, que me aguardava, redondo, em cima da mesa da cozinha.
 
Sunday, February 25, 2007
 

Estados de Alma






Ainda há pouco tinha a caneta no bolso, uma azul, de uma marca conhecida, francesa acho eu, e agora não sei onde meti aquilo. Bolsos e mais bolsos e mais buracos nas calças, para quê todos estes artefactos desnecessários se acabo sempre por perder tudo? É isso e as gavetas da secretária do meu consultório, sete gavetas, e ando sempre à procura do papel perdido algures. Não tenho paciência, isto seria óptimo sem bolsos e sem gavetas, sem papeis e sem canetas, tudo ao natural: - O senhor sente-se pior da depressão??? Arranje algo para fazer que isso já lhe passa, deixe a bebida e vá procurar uma mulher, por exemplo. Assim sem mais, emitia apenas um parecer informal, ganhava o mesmo, não tinha que prescrever receitas médicas e acumular papelada inútil e no fim de tudo, provavelmente, o efeito não seria muito diferente, uma depressão mais ou menos prolongada, com réplicas posteriores, mas e o dinheiro que se poupa nos medicamentos? São estas coisas que me lixam, não há dinheiro para comprar o batom para você meter nos beiços, nem para ir ao cabeleireiro arrumar essa desengonçada nuvem de cabelos, mas para comprar a merda dos fármacos vem a correr todas as semanas, com medo que a droga acabe. Prefiro aturar os esquizofrénicos, têm qualquer coisa de original e raramente se lamentam, vivem sem olhar para trás. Estão ali dois, de pijama às riscas, mesmo em frente ao portão que dá para a Avenida do Brasil, que teimam em dizer que no amor não existe ilusões, nem desilusões, se existe amor existe lucidez, uma certeza tão grande no outro que nada pode abalar esse sentimento. Ainda ontem lhes perguntei: E o ciúme? E os momentos em que sonhamos sem parar? E as discussões? E as crises? E a euforia? Tudo isto não abala, ou nos eleva? Riram-se e responderam-me com uma tranquilidade convicta: - Você ainda não ama, isso é aquela coisa de gostar-se muito, de querer estar com a pessoa desejada para descarregar as tensões do dia-a-dia, de se rever no outro, é claro que até pode gostar dela, mas amar é outra coisa, é aquilo que só irá sentir quando os últimos dias chegarem, quando mesmo às escuras reconhecer o calor da pessoa amada. Os carros buzinam na avenida, O que é que estes malucos entendem de sentimentos amorosos?, por entre as folhas amarelas das acácias e os chinelos rasos dos doentes que se passeiam em busca dos cigarros transeuntes. São precisamente 18 horas, o sol macilento espreita por cima dos prédios, chega ao fim mais um dia, Você ainda não sabe o que é amar homem, guardo tudo nas gavetas, mesmo os papeis que amanha vou dar como perdidos. Vou chegar a casa e tomar um bom banho, jantar uma boa mariscada e emborcar uma relíquia de champanhe que guardei algures numa prateleira do frigorifico, penso que foi na primeira, ou ainda não o comprei? Prefiro andar a pé depois do trabalho, Amigo tem um cigarrinho?, aproveito para desentorpecer as pernas, livrar-me do cheiro dos corredores do hospital e das receitas médicas copiadas uma após a outra. Por vezes perco-me no caminho, por exemplo são 21 horas e ainda aqui ando, à procura da minha casa na gaveta do prédio, Tenho a certeza que moro no 22, subo as escadas, Afinal deve ser no 20, abro a porta sorrateiramente, Afinal sou eu que não quero encontrar parte de mim naquelas quatro paredes, e ouço a televisão na sala a resmungar sons que não quero conhecer, tiro os chinelos rasos e o pijama às riscas, deito-me sem comer a mariscada, Afinal o champanhe não existe, e levo à boca quatro comprimidos e um copo com água, num gesto mecânico. Nem acendi a luz, mas senti a tua mão a afagar-me a testa, senti os teus lábios doces na minha orelha e a tua voz a embalar-me, na escuridão, com uma frase que julgo tê-la ouvido: - Vais ficar melhor meu amor, tenho a certeza…
 
Saturday, February 10, 2007
 

A Minha Mente No Teu Corpo



Ele quase dormia acordado, olhos sempre vidrados, ausente do mundo, tentava separar a mente do corpo, descarnar todos os sentimentos atabalhoados e perguntava, vezes sem conta, o porquê de sentir o que sentia, fechando-se nas imagens que recordava, nas últimas palavras proferidas e ouvidas naqueles diálogos imaginários, nem sempre claros, em frente do espelho da alma. Remoía, abundantemente, à laia de jogador de xadrez, as jogadas da vida que se lhe assaltavam no pensamento: - porque é que sinto isto, Luísa? Em cada pausa no trabalho, em cada esquina vazia de gente: - Porque é que sinto isto, Luísa? Chegava a abrir um livro nos transportes públicos, para a esquecer nas páginas amarelecidas, detinha-se nas interrogações filosóficas de Nietzsche e no seu sarcasmo em torno do papel feminino na sociedade, compreendia-o e insultava-o, - Este merdas tem razão, enchia-se de coragem e fechava o amarelo do livro, entre duas pulsações de papel um retorno ao cheiro doce, ao fecundo leito agora somente imaginado, e o sarcasmo anteriormente lido juntava-se ao fumo do escape do autocarro, Se ao menos Nietzsche conhecesse a Luísa, e desaparecia na atmosfera cinzenta. Antes de chegar a casa parava no café do costume, enchia o copo da imperial por cinco vezes, algumas palavras soltavam-se-lhe da boca, como se de um ventríloquo se tratasse, a voz era dele, mas o boneco era de outro gajo qualquer, Entorna de novo o frio da tua mão no meu peito, Luísa, adornava cada trago de cerveja com uma nova conversa entre o rato Mickey e o tipo da oficina, olhava para os ponteiros apressados do relógio, pulava por cima do Mickey, do pato do Donald, do Pateta e do mecânico e partia para o seu depósito oficial, Se ao menos o Nietzsche tivesse conhecido o sabor dos teus lábios, chegando à hora do costume.
- Boa noite.
- Boa noite querido, o jantar está na mesa.
- Não tenho fome, vou dar um beijo aos miúdos e vou-me deitar.
Embora soubesse que o seu gelo contagiava todo o árctico da casa, não pensava sequer em alterar fosse o que fosse. – Come ao menos uma sopa, entrava no quarto – Come ao menos uma peça de fruta, e entregava-se ao torpor do jardim dos lençóis, - E um pouco de queijo?, ligava o rádio e detinha-se a escutar o som por ele vomitado:

Morre-se devagar neste país
onde é depressa a mágoa e a saudade
oh meu amor de longe quem me diz
Como é a tua sombra na cidade

Morre-se devagar em frente ao Tejo
repetindo o teu nome lentamente
cintura com cintura, beijo a beijo
e gritá-lo, abraçado, a toda a gente

Morre-se devagar e de morrer
fica a cinza de um corpo no olhar
oh meu amor a noite se vier
é seara de nós ao pé do mar (Canção: Rua do Quelhas - Vitorino)

Sucumbia aos diálogos frenéticos (onde estás? Tens outro? Ainda me amas? Ela gosta de mim, ela só está a fazer mais um daqueles jogos, estou certo, eu sei que sim) – Um leite quente?, e adormecia sem escutar o gelo que deixara para trás, - E olhares para mim ao menos?!, sem olhar para trás, numa fuga obsessiva.
- Porque Choras Ana?
- Porque quero.
- Tens algum problema?
- Consegues ver quantos pés no fundo da cama?
- Quatro
- Então diz-me porque é que eu vejo seis?
 
Tuesday, January 23, 2007
 

Diabo Seja Cego Surdo e Mudo

- Ardo na chama vil
- Acendo a luz da esperança
- Morro de mil prazeres
- Perdoou mil pecados
- Amo a libertinagem
- Amo o próximo
- Carne, ópio, obscenidade
- Piedade, devoção, santidade
- Eu sou o Diabo
- Eu sou Jesus
- Eu sou livre
- Eu fiquei preso na cruz.
 
Thursday, January 18, 2007
 
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Abre o Lixo do Amor


A estrada molhada conduzia-os até um dos comércios clandestinos de Chelas. Ele de gorro preto, usado por mais de mil cabeças, olhos cansados e no rosto a poeira humedecida, entranhada nas rugas profundas, fruto do suor desperdiçado nas voltas da vida. Ela de sorriso irónico, de quem nunca espera nada de bom, partilhando da mesma poeira. Chegavam sempre por volta das dez horas à compilação desarrumada dos prédios arco-íris. O cheiro a mijo, copiosamente vivo, expulsava sombras dos becos labirínticos, desenhados nas traseiras daquele betão colorido. A dose do costume ó Bexigas? As moedas soltavam-se-lhe da mão, com alguma dor, pela vontade de ser gente e pela antecipação dolorosa da ressaca futura. - Até amanha sócio! Bexigas saía do beco, na companhia de outras sombras, e voltava-se agora para a babilónia da rua, de bolsos cheios de sonhos alucinantes. Ciganos vendiam na calçada as cuecas mais baratas, alguma vez vistas, enquanto o Mercedes albergava ainda as crianças ranhosas em pijama. Lena esperava-o no outro lado da estrada, sentada na paragem, e observava, impavidamente, o seu reflexo na janela do autocarro, Tens dentes? Tens. Tens cabelo? Tens. Pareces normal? Embora pensasse que sim, a expressão misericordiosa dos passageiros que a olhavam faziam-na acreditar que o gancho do cabelo estava mal colocado, que as olheiras estavam demasiadamente pinceladas de insónias, Os putos estão cheios de ranho, vão cagar o Mercedes todo, e que a roupa, mesmo só pelo aspecto, cheirava aos becos revisitados vezes sem conta pelo seu companheiro, Vamos lá freguês, o cigano está maluco e faz tudo a um euro, é comprar, é comprar! todos os dias, sem excepção.
Sorriram um para o outro, com os poucos dentes que restavam, beijavam-se com o pouco amor que restava nos olhares curiosos que os cercavam, e partiam, caminhando por entre sonhos de algibeira e misericórdias transeuntes, de mãos dadas, sempre de mãos dadas, com toda a fé peregrina, até à próxima babilónia. – Vais ver Lena, hoje vai haver concerto no Atlântico, vai ser uma arrumar de carros que não imaginas, vamos abrir uma empresa de arrumação automóvel, com farda e tudo, vamos comprar uma casa, uma casa não, um castelo, tu mereces um castelo minha rainha e um Mercedes como o dos ciganos. Uma sandes no bucho, de torresmos, água da torneira Torce tudo para a esquerda agora, e uma chuva massacrante, alimentavam mais um dia, Farda vai ser verde e amarela, de trabalho, de misericórdias descrentes, Está bom assim. Carros apressados e ambulâncias galopantes salpicavam a cidade de ansiendade. Casais atarefados, de olhos vazios, à laia de bonecos de cerâmica dos antiquários, sem expressão, marchavam rumo ao dormitório, depois de mais um dia expostos numa vitrina qualquer,sem sangue, sem as rugas poeirentas e sem os ganchos desconjuntados, com todos os dentes nas bocas fechadas. - Vamos seguir-lhes os passos Lena, já não há mais lugares vazios para inventar, mas ainda não vai ser desta que me torno um empresário de sucesso, daqueles com gravata e tudo. Regressavam agora ao castelo de madeira da barraca, arrumada entre uns caniços e umas quantas outras barracas, algumas delas já abandonadas por força da mão do Senhor, nos arredores do campo da bola do Oriental, uma espécie de condomínio desintegrado, com a pressa vagarosa de uma lesma, de mãos dadas, copiando os passos de cerâmica e ditando, sílaba a sílaba, o calor de um beijo, Ainda temos sangue, a quem se atrevesse a olhar. Ao chegar, deitaram-se num colchão raquítico de riscas azuis, separaram metades de limão, colheres queimadas e seringas usadas. Adormeciam de mãos dadas e de barriga cheia de sonhos, de tal forma que, por entre as ripas de madeira do castelo, o Tejo parecia um imenso lençol azul, onde se abrigavam. Comprem as cuecas mais baratas fregueses, caminhem de olhos vazios com as vossas pernas de cerâmica, comprem um Mercedes com crianças ranhosas lá dentro, lancem olhares misericordiosos a tudo o que arrume carros com gorros piolhosos e acima de tudo evitem pensar que no lixo pode nascer o amor.
 

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Location: Odivelas, Portugal

Mais perto do fim, mas ainda assim no início...

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